sábado, 23 de fevereiro de 2013

"A Hora Mais Escura (Zero Dark Thirty)" demonstra que Kathryn Bigelow tem mais bagos que muito diretor metido a macho


Há algumas semanas, li um artigo da Cracked.com que versava sobre diretores ruins que, acidentalmente, fizeram bons filmes. Se quiser, leia o texto aqui. Entre os cineastas que se enquadrariam em tal categoria está Kathryn Bigelow - The Hurt Locker seria a sua exceção à ruindade. Diante de tal assertiva, concluí: "BULLSHIT!!!" Kathryn Bigelow (ou K-Bigs, como a chamarei doravante), em minha humilde opinião, sempre foi uma diretora completamente badass. Ao lado de Antonia Byrd, é uma das poucas cineastas cujo toque feminino consiste em fazer filmes de macho mais casca-grossa que a maioria dos filmes de ação americanos que saem todo ano. The Hurt Locker, é claro, é um prova cabal disso - apesar de ser um grande admirador de Avatar, creio que se trata de um dos poucos casos em que o Oscar foi, realmente, para o melhor filme.

Ocorre, contudo, que The Hurt Locker está longe de ser uma exceção. Meu primeiro contato com a obra de K-Bigs foi Caçadores de Emoção (Point Break), que já considero um clássico - um filme de ação/policial extremamente bem-dirigido, com um Keanu Reeves surpreendentemente convincente (fingir ser um surfista playboy não deve ter exigido muito esforço, claro), Patrick Swayze como um antagonista carismático que acaba conquistando o público e, naturalmente, a presença mágica de The Buse, cuja magnificência já acrescenta pontos de foderosidade a qualquer obra de que participe.

Louco como uma caralha: Tudo fica melhor com Gary Busey.
Sendo fã inveterado de histórias de vampiros (desde que eles não brilhem e matem ou vampirizem humanos idiotas, porque, em caso contrário, WTF?), acabei, posteriormente, deparando-me com mais uma pérola da diretora: Quando Chega a Escuridão (Near Dark). Contrariando toda uma tradição literária e cinematográfica emo que macaqueia a Anne Rice, Near Dark é uma "visão revisionista da lenda do vampiro" bastante diferente da média: ao invés de janotas eurotrash tendo crises de consciência e lamentando seu vazio existencial, Near Dark mostra vampiros fodões  que saem por aí num furgão massa, atacando bares de beira de estrada e barbarizando humanos amanezados. Além do roteiro instigante, o filme tem bela direção e fotografias, que conseguem construir atmosfera gótica no oeste americano.

ISSO É QUE É UM ASSASSINO DE VERDADE, BELLA!
Outro exemplo? Strange Days. Apesar de extremamente datado (a virada do milênio na vida real foi bem menos empolgante), trata-se de um dos poucos filmes que lida com informática em geral e pirataria em particular que parece ter sido feito por alguém que, simultaneamente, tem ideia de como funciona um computador (Len Wiseman: Não dá pra assumir o controle de um avião ou helicóptero com um laptop, porra!) e sabe como construir um filme envolvente. 

Como The Hurt Locker, todos esses filmes tem homens como personagens centrais e entendem muito bem a psiquê masculina. Há alguns posts atrás, ao falar sobre Luta com Lobos, ponderei as diferenças entre filmes voltados ao público masculino e filmes que visam o público feminino. Hurt Locker é um dos raros casos de "filme pra macho" dirigido com perfeição por uma mulher. Claro, a premiada obra gira em torno de um monte de homens fazendo coisas másculas. A Hora Mais Escura, apesar de seguir um estilo bastante semelhante a Hurt Locker tem uma distinção: trata-se de uma obra com trama muito mais abrangente e complexa (épica, eu diria) e possui, como protagonista, uma mulher que se faz respeitar num ambiente extremamente machista, conseguindo ser completamente foda sem jamais perder a feminilidade.

A mulher em questão é Maya, interpretada com maestria por Jessica Chastain. Após breve abertura mostrando, somente através de áudio, notícias e reações aos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001, o filme avança dois anos e conduz o espectador a uma prisão clandestina da CIA, onde o interrogador Dan (Jason Clarke)  está introduzindo o recém-capturado Ammar (Reda Kateb) às táticas de investigação "supralegais" da agência, observado por uma encapuzada e visivelmente desconcertada Maya, que, aparentemente, está em seu primeiro trabalho em campo. Aqui, o filme já ganhou minha simpatia ao mostrar, de forma seca e objetiva que a tortura é, ao contrário de todas as alegações oficiais em contrário, procedimento-padrão para obter informações e (o mais importante) sem emitir qualquer juízo de valor sobre a prática. Após ficar de saco cheio e concluir que vai ser preciso mais tempo para dobrar o terrorista cativo, Dan é convencido pela protagonista a prosseguir com o baculejo. É aí que começamos a ver a verdadeira natureza de Maya, que decide presenciar as sessões de tortura seguintes sem capuz (indagada pelo colega, ela justifica a escolha observando que ele não está ocultando o rosto) e, diante de um apelativo pedido de ajuda de Ammar, oferece resposta em tom delicado, mas de teor brutal: "Você pode se ajudar falando a verdade."

Após muita tortura física e psicológica, os dois agentes conseguem, através de um brilhante xaveco elaborado por Maya, usar um atentado terrorista de forma construtiva e convencer o terrorista a dar com a língua nos dentes.

HAHAHAHA! You're a fucking dipshit, Ammar!
A confissão acaba revelando um nome até então desconhecido - Abu Ahmed, suposto mensageiro de Osama Bin Laden. Convencida de que tal indivíduo é a chave para chegar ao chefe da Al Qaeda e cética em relação à teoria mais aceita (a saber, que Bin Laden estaria escondido em territórios tribais, provavelmente em uma caverna), Maya vai passar os próximos nove anos, a despeito da incredulidade de praticamente todos os colegas e superiores, usando toda a sua perspicácia e determinação para localizar o moleque-de-recados-de-luxo. A saga vai mostrar a agente deixando, gradualmente, seus melindres de lado, até emular perfeitamente seu tutor em sessões de tortura, partir para a truculência e intimidação de colegas e superiores e, finalmente, conduzir à operação do Team 6 dos Navy Seals que (SPOILERS para quem viveu isolado do resto da humanidade nos últimos dez anos; aliás, se você vive isolado da humanidade e está lendo isto, como conseguiu acesso a Internet?) localizou e eliminou o nada saudoso Osama.

Contrariando minha prolixidade habitual, não vou entrar em detalhes sobre a trama. Basta dizer, apenas, que o filme segue um roteiro instigante, envolvente e minucioso e que, apesar de poucas sequências de ação, não perde a atenção do espectador por um segundo. Embora tenha estilo semelhante a Hurt Locker, confesso que o filme que mais me vem à mente ante a abordagem seca, direta e detalhista (parar de prestar atenção ao filme por alguns segundos pode levar o espectador a perder completamente o fio de meada) de K-Bigs é o clássico O Dia do Chacal: como a obra-prima de Fred Zinnemann, Zero Dark Thirty consiste, basicamente, num longo e complicado trabalho de investigação, com fotografia naturalista,  sem tentar incutir no espectador qualquer valoração moral dos atos dos personagens e usando de pouquíssima pirotecnia até a espetacular sequência final - uma reconstituição primorosa, mostrando domínio de Bigelow sobre cinema puro, da operação dos Navy Seals que culminou com a execução de Bin Laden. Como o Inspetor Lebel de Day of the Jackal, Maya se aproxima de seu alvo através de investigação excruciante e incansável, instinto,  persistência inabalável e completa indiferença às frescuras de seus superiores. A gradual transformação da personagem, de mocinha-com-cara-de-professora-de-pré-escola-melindrada-com-tortura para agente casca-grossa que não hesita em dar carteiradas, prender e arrebentar e consegue se impor entre a macharada que domina seu ambiente de trabalho é completamente verossímil e me fez pensar que a diretora imprimiu um toque autobiográfico à personagem. Aproveitando o ensejo, tenho que tecer um comentário a respeito da interpretação de Chastain. Ronald Perrone, amigo cuja opinião muito prezo, comentou comigo que achou a personagem um pouco forçada. Eu concordo que, a princípio, as tentativas de intimidação usadas pela personagem, de fato, parecem artificiais, mas não considero tal impressão fruto de uma interpretação ruim. Com base em experiência particular, acredito que a "interpretação forçada" foi intencional: Maya, em minha percepção, é uma pessoa de índole pacífica e avessa a conflitos que se obriga a ser truculenta porque, caso não o faça, não logrará sucesso em sua missão. Ao longo do filme, a atitude da personagem vai se tornando cada vez mais natural e convincente, de modo que, quando ela finalmente diz aos Navy Seals que "Bin Laden está lá e vocês vão matá-lo para mim", Maya parece ter assimilado a atitude badass, que se torna parte de sua personalidade.

Além da direção impecável, roteiro enxuto e despido de enrolações ou juízos de valor, e da formidável interpretação de Chastain, posso citar vários outros artistas que contribuem, com participações de peso, para a excelência da obra: Mark Strong, como superior hierárquico que profere um discurso que só posso qualificar como "versão homicida do clássico close it do Alec Baldwin em Glengarry Glen Ross"; Stephen Dillane, como um supervisor da Agência Nacional de Segurança estadunidense, a NSA, que lembra muito o estilo curto, grosso e completamente despido de tolerância a picaretagens do Stannis Baratheon de Game of Thrones; James Gandolfini, excelente como sempre, interpretando o diretor da CIA como um indivíduo tão astucioso quanto e muito menos inseguro que seu personagem mais famoso; e Joel Edgerton (que sempre vi como "a versão jovem daquele bunda-mole do Owen Lars de Star Wars"), muito convincente como um Navy Seal badass. O filme conta ainda com uma curta participação de Scott Adkins que, não obstante os poucos diálogos do personagem, muito me agradou - como já disse antes, acho que o ator britânico tem potencial para ser um astro e a presença dele, por menor que seja, num blockbuster hollywoodiano pode ser o primeiro passo para o estrelato. Caso que considero análogo ao de Adkins é o do Tom Hardy, que começou com personagens que passaram despercebidos (como o Clarkie de Layer Cake e um soldado em Falcão Negro em Perigo) e, hoje, é um ator A-List.

Para ser inteiramente justo, tenho que apontar alguns defeitos do filme: duas sequências de suposto suspense (o carro-bomba no Afeganistão e a tentativa de assassinar Maya) são telegrafadas - segundos antes do clímax, já consegui adivinhar o desfecho das sequências. Nada, entretanto, que macule a excelência generalizada do filme. E, como já referi, a reconstituição da operação que culmina com a morte de Bin Laden (apesar de ter uma conclusão de conhecimento público e notório) é soberba e prende a atenção do espectador do início ao fim, não obstante sua longa duração. A sequência, aliás (apesar de ser dirigida com a mesma neutralidade que o resto do filme), me fez perceber o fundamento mais forte da ojeriza que sinto por indivíduos da laia do Osama: a hipocrisia dos referidos filhos da puta, que convencem moleques influenciáveis de que se matar, levando "infiéis" junto consigo é um passaporte para o Paraíso, enquanto eles, os líderes, preferem ficar bem acomodados em fortalezas e não hesitam em usar mulheres e crianças como escudo.

Yes, now the rains weep o'er his hall and not a soul to hear!
E, contrariando o teor do artigo da Cracked.com que mencionei no início do post, a cena final de A Hora Mais Escura mostra um tema comum à filmografia de K-Bigs: como Will James, Johnny Utah e Bodhi, Maya é uma personagens cuja vida gira em torno de sua missão e que, após o cumprimento do dever, se vê completamente despida de propósito.

Não vou dizer que Zero Dark Thirty é o melhor filme estadunidense do ano (atribuo tal título a Django Livre), mas posso dizer, com certeza, que é um dos melhores e prova cabal de que Kathryn Bigelow é uma das profissionais mais foda em atividade. E, para fechar com chave de ouro, K-Bigs, já nos seus sessenta  e um anos, continua sendo um mulherão:

Yummy granny!
Não recomendo, contudo, a ninguém que passe uma cantada idiota na moça: apesar de gata, ela parece também ser plenamente capaz de cobrir o cidadão médio de porradas. Limitem-se a ver Zero Dark Thirty, que é foda e não vai ferir a integridade física de ninguém além dos membros da Al Qaeda. O que não é problema porque, sinceramente, fuck those guys. Waterboard neles!

P.S.: A cena em que o Chris Pratt se prepara para o ataque ouvindo Tony Robbins e comentando com os colegas que tem "grandes planos" para compartilhar depois da operação é hilária, mas tenho que admitir que faz sentido. Podem me sacanear, mas Tony Robbins é foda, cara!