quinta-feira, 20 de setembro de 2012

"Zombie Lake": Ruim Demais Para Um Só Post



Para aqueles que gostam de concisão (e, não obstante, lêem este blog), posso resumir minha reação a Zombie Lake com o video abaixo:



Outra maneira sintética de dizer tudo que se precisa saber sobre Zombie Lake? É o filme que o Jess Franco se recusou a fazer, em razão do orçamento fuleiro demais para seus padrões. Quem conhece a vida e a arte do legendário Jesus "Jess" Franco (ou, como alguns [absolutamente ninguém, pois inventei esta idiotice agora] preferem chamá-lo, "The Hoos") sabe o quanto a idéia de um orçamento tosco demais para os parâmetros do gênio espanhol é bizarra. Afinal, se há um elemento presente em toda sua obra (que já está nos três dígitos e continua aumentando), é a absoluta falta de preocupação com fatores que podem custar dinheiro, como edição, iluminação, lógica, interpretações decentes e o fato de que pastores alemães e lobos são animais bem distintos. O homem demonstra que dinheiro é algo abaixo de seu talento superlativo - uma ninharia que só aflige os mais fracos. Se você não conhece a obra de "The Hoos", só posso dizer que é necessário repensar toda a sua vida agora e buscar conhecer e vivenciar o fantástico universo criado pelo cineasta/roteirista/compositor/picareta, pois um mundo sem Jess Franco é um mundo sem magia, risos, Soledad Mirando como vampira lésbica, Dr. Orloff e pastores alemães em plena luz do dia passando por lobos na calada da madrugada. Se alguém me pedisse para mostrar uma sequência que condensa toda a The Hoos Experience, eu mostraria a preciosidade abaixo:


Assustador, não? Precisei de uns 10 minutos para parar de rir... digo, me recobrar do pavor e voltar a escrever. Mas retornemos a Zombie Lake. Em 1981, a Eurociné, augusta produtora francesa famosa por clássicos como... eh... são tantos que acho melhor nem citar, para não cometer injustiças. Enfim, a Eurociné decidiu que precisava realizar uma obra que mudasse para sempre o mundo como o conhecemos. Para isso, convocou The Hoos, que escreveu o roteiro que mais tarde acabaria se tornando o filme em análise. Findo o script, restava apenas uma questão: quanto custaria a obra que mudaria todos os universos do mundo? Consegui uma gravação da negociação (tenho informantes por toda parte; um deles pode estar atrás de você AGORA!) e posso dizer, sem medo de falsear a verdade (porque eu sou acanalhado e minto na maior cara-de-pau), como foi o diálogo entre o Representante da Eurocine (RE; não confundir com Resident Evil, porque, se confundir, o diálogo não vai fazer sentido) e The Hoos (TH):
RE: Muito bom, Jess. Muito bom. Por quanto você acha que dá pra fazer o filme?
TH: Trezentos.
RE: Trezentos centavos? Meio salgado, mas acho que podemos dar um jeito.
TH: Não, cabrón! Trezentos dólares! 
RE: Mon Dieu!  Não seja insensato, Jess. Você bem sabe que não temos essa quantia.
TH: Duzentos, então. Faço por duzentos dólares.
RH: Posso pagar cinquenta.
TH: Screw you guys, I'M GOING HOME!
Barulho de porta sendo aberta e fechada com força, indicando que o Franco, conforme ameaçado, saiu do recinto, muito provavelmente decidido a ir para casa. Após alguns segundos de silêncio...
RE (atônito): Sacre bleu! Ele esqueceu o roteiro!
Após mais alguns segundos, RE solta uma gargalhada diabólica.
RE: O Franco se ferrou! Agora é meu roteiro!
Com o roteiro em mãos, restava apenas à Eurociné decidir quem poderia substituir The Hoos na direção da obra. RE não pestanejou: chamou o igualmente fantástico Jean Rollin. Trata-se de um cineasta tão brilhante quanto The Hoos, mas com idiossincracias radicalmente distintas. Se eu compará-los utilizando personagens de gibi como referência, diria que o Franco é o Ra's Al Ghul (maníaco imortal!), enquanto Jean Rollin era o Demolidor (ceguinho arretado!). O que poucos sabem é que, além de cineasta genial, o saudoso Jean Rollin era também um negociador dos mais astutos. O que nos conduz a mais uma gravação ilegal que caiu em minhas mãos - a discussão entre RE e Jean Rollin sobre o orçamento do filme:
JR: Posso fazer o filme por cento e cinquenta.
RE: Cento e cinquenta centavos? Meio salgado, mas acho que...
JR: Cento e cinquenta dólares!
RE: Sacre bleu! Jean, você bem sabe...
JR: Nem tente me intimidar falando bonito. Eu também sou francês, seu animal!
RE: Mon Dieu! Eu...
JR: Eu também sou francês! Deixa de enrolar.
RE (secamente): Falou. Posso pagar cem dólares.
JR: Cento e cinquenta.
RE: Putz! Cento e dez dólares!
JR: Cento e cinquenta.
RE: Tá bom, tá bom. Posso arranjar cento e trinta dólares.
JR: Fechado!
RE: Escroto sovina!
JR: Sou mesmo!
Após alguns segundos, escuta-se uma porta se abrindo e fechando.
JR (falando sozinho): Hahaha!!! Mané! Eu teria aceitado cento e vinte dólares!

Jean Rollin

Mas o representante da Eurocine caiu na lábia do Rollin e uma obra-prima nasceu. E com "obra-prima",  naturalmente, quero dizer "filme tão horrível que o próprio diretor, que nunca primou pela excelência, ficou constrangido em admitir que tinha dirigido. E dizem que, toda vez que alguém vê o filme, seu cadáver rola no túmulo."

São muitos os títulos, mas o filme é sempre ruim. Que barulho é esse? É o Jean Rollin se revirando no túmulo.
Começamos com Jean Rollin mostrando logo o que sabe fazer melhor: mostrar mulher pelada. Em menos de dois minutos de filme, ele já deixa claro como a banda vai tocar: a história começa com uma beldade chegando a um lago ("Será o 'lago dos zumbis' do título?", um idiota indagaria. "Sim", eu responderia, porque é), tirando a roupa e brindando o espectador com um nu frontal. Após mais alguns segundos de nudez gratuita (para deixar bem claro para todo mundo que TEM MULÉ PELADA NA TELA, PESSOAL), a moça se depara com uma placa que aponta para o lago e indica... Não sei exatamente o que...

Talvez "Jack Sparrow e Barbossa estiveram aqui".
Mas o importante é que a moça não se deixa intimidar por sinalização obviamente feita por uma criança de seis anos de idade: ela tira a placa, esconde no mato e vai nadar. Após mais alguns minutos em que a moça nada e Rollin parece estar gritando "EI! MULHER PELADA, PESSOAL!", é possível perceber alguns detalhes interessantes. Primeiro: embora seja dia na superfície, todas as imagens debaixo d'água deixam a impressão de que já anoiteceu. Segundo: tem um cara esquisito embaixo d'água (BRRR!). Terceiro, uma mão emerge da água e faz um gesto de "Tigrão vai te pegar!" (Ai! Que medo!). Quarto, um cara esquisito surge do nada e ataca a moça. Durante todo o ataque, a fotografia parecer insistir em mostrar que é dia na superfície, mas noite embaixo d'água.

A diferença é sutil, mas, com muita atenção, é possivel perceber.

A essa altura, um espectador mais sagaz poderia me indagar: "Kurt, será que essa cena serviu de inspiração para o primeiro ataque do Tubarão do Spielberg?" A tal espectador, eu diria: "Sim!" Um segundo espectador, ainda mais astucioso, poderia observar que "Vocês dois são retardados! Kurt, o Tubarão do Spielberg é de 1975 e esse filme idiota de zumbis aquáticos é de 1981." A tal espectador, explico, após uma sonora gargalhada: "Pensou que ia me fazer passar por imbecil, mas quem acabou sendo idiota foi você! Todo mundo sabe que o Spielberg inventou uma máquina do tempo, viajou para o futuro, viu Zombie Lake, se inspirou e filmou o ataque inicial de Tubarão".

Baseado em fatos reais [citation needed]
A diferença, claro, é que, enquanto o hollywoodiano Tubarão se ocupa apenas do óbvio ululante (uma mulher sendo devorada por um tubarão), Zombie Lake aborda o ataque de forma muito mais complexa: é evidente que a cena, na verdade, representa a eterna luta entre o id e o superego. Para quem ainda não entendeu, elucidarei: a superfície (calma, serena, inofensiva) representa, obviamente, o superego, enquanto a escuridão submersa representa o id: sombrio, violento, descontrolado, apalpando, à força, uma banhista nua. A questão é: quem vencerá essa batalha? Ao que eu retruco: precisamos escolher entre dois extremos? Não é possível chegar a um meio-termo?

Lucio Fulci: É claro que sim!

Corta para uma lanchonete/cantina/restaurante/boteco chibunga, onde acompanhamos, em tempo real (e começamos a sentir falta do dinamismo do Bruno Mattei na edição), uma garçonete servir uma mesa e caminhar, em silêncio, até outra mesa, onde estão dois indivíduos cujo nome não gravei, mas que identificarei como "Bigodão" (porque ele tem um bigode)  e "Garrafa" (por motivos que logo se tornarão óbvios). A garçonete, ao servi-los, solicita que tentem "não quebrar copos, desta vez". Irritado, Garrafa (explicando seu apelido) retruca que "É só você me trazer a garrafa que não vou quebrar copo nenhum." Em seguida, respondendo a algo que ninguém havia perguntado, o cidadão resmunga: "A garota ainda não voltou? Não se preocupe, ela deve ter encontrado algum jovem garanhão." E Bigodão indaga, delicadamente: "Ela não disse.... (pausa dramática) aonde porra estava indo? Ela deixou a bolsa aqui." Não inventei nada: o cara dá uma pipada em seu cachimbo e resmunga: "Well... Didn't she say... where the fuck she was going? She left her bag here." A garçonete apenas responde que ela "disse que ia ao lago". Desinteressado, Bigodão aduz, mostrando sua energia contagiante, que "Se ela não aparecer até amanhã de manhã, vou ver o prefeito e iremos procurá-la." Sem exageros, a dublagem em inglês é um dos troços mais crassos que já escutei e deixa qualquer filme asiático da década de 1970 com inveja: parece que o negócio foi feito pela turma responsável por aquele vídeo idiota do "I'm the Juggernaut Bitch!". E, tendo em vista a voz e entonação do Bigodão, a tagline do filme fica bem menos ridícula: é óbvio que é ele quem está dizendo que "They're WAITING for YOU... just BENEATH THE SURFACE!"

A próxima cena se passa na manhã seguinte, na casa do prefeito (Howard Vernon, obviamente precisando pagar alguma conta vencida). Este é acordado por Bigodão, que vai entrando residência adentro sem a menor cerimônia. O prefeito, que estava dormindo numa cadeira (aparentemente, o orçamento não deu para incluir uma cama), acorda, pergunta pela moça e é informado por Bigodão que a mesma ainda não apareceu e que ele "foi até o lago" e encontrou "isso" (as roupas da moça). Com uma expressão de quem vai precisar ir ao banheiro dentro de alguns segundos, o prefeito resmunga que "Era isso que eu temia" e que, se a moça não aparecer até a manhã seguinte, vai chamar a polícia. Quanto à primeira assertiva, só posso indagar "O que, exatamente, Vossa Excelência temia? Que a moça tivesse tirado a roupa?" e, quanto à segunda, só posso parabenizar o prefeito pelo seu invejável espírito de liderança. Cacete! Já estou me sentindo mais seguro com este cara no comando. Há (ao que parece) dois dias que a moça desapareceu, mas não temam: se ela não aparecer até amanhã, o prefeito vai entrar em ação e chamar a polícia! E ele ainda acrescenta que "Está muito preocupado" porque acha que "isto envolve muito mais do que parece." E o espectador, é claro, só pode exclamar: "Hein?" Ou, como diria o Bigodão: "Alguém faz idéia... de que porra esses idiotas estão falando?"

"Muito preocupado" ou "ansioso para se livrar da visita inconveniente e  voltar a dormir"?
 Bigodão, após alguns segundos de ponderação, resmunga que "acha que ela se afogou", mas vai "manter o prefeito informado". Isso. Afinal, se ela se afogou, mais algumas horas apodrecendo no lago não vão fazer diferença mesmo. Para que esquentar a cabeça?

ENQUANTO ISSO, NO LAGO DOS ZUMBIS, uma moça está empurrando um carrinho-de-mão, que parece conter uma espécie de massa, um balde e uma palmatória. Entrementes, um "zumbi" (sujeito com a cara pintada de verde e o resto da pele de cor completamente saudável) está saindo de sua sepultura aquática.

ARTE!
Após bater vigorosamente na massa com a palmatória, a moça a joga no balde, tapa o balde (Não é um balde! É uma panela!), sai com a panela e a palmatória, joga tudo no carrinho-de-mão, sai empurrando o carrinho... empurra o carrinho por mais alguns segundos... o zumbi caminha, trôpego, por mais alguns segundos... a mulher empurra o carrinho por mais alguns segundos... é atacada pelo zumbi, que a derruba, vomita extrato de tomate aguado em seu pescoço, fica beijando seu pescoço por alguns segundos... beija o pescoço por mais alguns segundos, enquanto a moça mexe a cabeça de um lado para outro... encara a câmera e me deixa com a expectativa de que vai imitar o Tião Macalé e exclamar "NOJENTO!"... e, finallmente, depois que a moça para de mexer a cabeça... beija seu pescoço por mais alguns segundos.

Na cena seguinte, começo a achar que o bicho vai pegar: três cidadãos estão carregando o corpo da moça pelas ruas da cidade. Parece que vamos entrar no clima de "Irmãos Earp e o Doc Holliday se Dirigem ao Curral OK". Só parece, porque, ao invés de um dramático e violento confronto... eles carregam a moça por mais alguns segundos. E uma multidão começa a se formar e a seguir os três indivíduos por alguns segundos. A câmera muda de ângulo, mostrando o pescoço da moça, coberto de extrato de tomate aguado, enquanto esta é carregada por mais alguns segundos. Após vários outros segundos, o corpo da moça é colocado no chão, às portas de uma casa. Dois dos três cidadãos  vão embora, enquanto o outro (não tenho certeza, mas parece ser o Garrafa) fica com o corpo. A porta da casa se abre e alguém sai. A princípio, o enquadramento me faz pensar que é o Cavaleiro sem Cabeça de Sleepy Hollow, mas, após uma hilária mudança de ângulo (a câmera se volta para a moça, no chão; acho-que-é-o-Garrafa puxa o vestido da falecida, cobrindo sua calcinha que estava à mostra e protegendo sua dignidade [algo meio inútil, depois de carregar a coitada com a calcinha à mostra por toda a cidade], e fecha os seus olhos), revela-se que quem saiu da casa não foi o Cavaleiro Sem Cabeça: é o prefeito Howard Vernon, que, após olhar para a multidão e para acho-que-é-o-Garrafa, profere mais um discurso que mostra como um líder nato se comporta: "Não há nada que possamos fazer até que a polícia venha descobrir o que está havendo. Coisas demais andam acontecendo por aqui; teremos que levar o cadáver para o hospital." Pausa dramática. "Para uma autópsia. Estou certo de que se algo estiver errado a polícia vai mandar alguém." Percebendo que seu monólogo não foi suficiente para convencer Acho-que-é-o-Garrafa a ir embora, o prefeito o chama para dentro de casa e tenta mostrar sua solidariedade. "Escute, Garrafa, eu sei como você se se sente em relação a sua pobre filha..." Garrafa: "É, eu sei." E sai. Ajoelha-se ao lado do corpo da filha e, por alguns segundos, olha para ela, com uma expressão indecifável. Se eu acreditasse no sobrenatural, diria que Jean Rollin conseguia prever o futuro e, graças a tal poder, leu meu post sobre o Blackenstein vários anos antes que eu o escrevesse. Injuriado, o Demolidor francês disse: "Ah, então esse rapazinho pensa que sabe o que é filme mal-feito? Pois vou mostrar a ele!" E foi por isso que ele fez Zombie Lake.



Sério, toda a sequência me faz pensar que o Rolllin dirigiu o filme sob a tutela espiritual do Cthullu. Os caras carregando o corpo pela cidade, o discurso idiota do prefeito, o diálogo estapafúrdio entre este e o pai da falecida e o dramático momento em que este, ajoelhado, simplesmente olha para a mancha de extrato de tomate e passa alguns segundos meditando... É tudo tão surreal que fico sem saber se é alguma piada muito inteligente que minha mente insignificante não logra entender ou se o Rollin e sua turma estavam realmente tão pouco preocupados com o resultado final. E quanto à "mancha de extrato de tomate": eu sei que é para o espectador pensar que o zumbi rasgou a garganta da moça, mas é impossível levar isso a sério. O efeito visual é paupérrimo e jamais convence alguém de que "aquele troço vermelho" no pescoço da moça é uma ferida. De modo que vou partir da premissa de que todo mundo na vila em que se passa o filme tem alergia a extrato de tomate e os zumbis, por uma ironia do destino, tem a mania inconveniente de vomitar tal condimento em quem cruza seu caminho.

Na cena seguinte, Howard Vernon está importunando duas crianças que nunca vimos antes, pedindo que os pimpolhos contem "tudo que viram na noite passada". Corta para o Howard Vernon entrando em sua casa, com uma expressão de preocupação, pegando um livro (cujo título ou conteúdo não conseguimos ver) e lendo por alguns segundos e... corta para uma jornalista chegando no restaurante fuleiro do início do filme. Que diabos foi isso? Primeiro, ele aparece perguntando a duas crianças que nunca apareceram antes para contar de novo "tudo que elas viram noite passada" (o que não sabemos) e, antes que elas contem, a cena corta para ele chegando em casa, lendo e corta. É impressão minha ou o Rollin acabou de desperdiçar aproximadamente dois minutos de duração sem acrescentar absolutamente nada ao filme? Eu ia fazer uma piadinha sobre a verdadeira ameaça à vila ser a aparente pedofilia do prefeito, mas não posso, por mais tentadora que seja a situação e por mais sórdido que seja meu senso de humor. As cenas não sugerem nada disso. Sugerem apenas que o editor é péssimo. Trata-se perda de tempo em seu estado mais puro.

Voltamos à lanchonete/restaurante/bar/podrão do início do filme, onde somos apresentados a uma nova e vibrante personagem: uma maria cebola idiota que já chega tirando fotos sem pedir a permissão de ninguém, deixando claro que acha toda a população pitoresca o suficiente (ou um bando de freaks grotescos o bastante) para ser fotografada sem nenhuma explicação.

"Olha que bonitinho! Parecem gente sentados em torno da mesa!"
Após alguns segundos... Ok, sei que estou usando essa expressão em excesso, mas não conheço muitas expressões que guardem relação de sinonímia com de "após alguns segundos". "Após uma grande quantidade de centésimos"? Enfim, a moça se apresenta à clientela do podrão como "repórter" de um jornal cujo nome não consigo identificar e diz que está procurando escrever uma matéria sobre a vila. Os clientes se apressam em enfatizar que "não tem nada pra escrever". Não sei o que é mais bizarro: a absoluta falta de noção da moça (É assim que jornalistas de verdade trabalham? Passeando por aí, tirando fotos aleatoriamente e pedindo sugestões a anônimos?) ou a desoladora falta de estima dos cidadãos pela sua vila. Cara, eu passei alguns minutos no município de Exu/PE e já tomei conhecimento de uma história interessante ("Seu carro tem vidros fumê. Não entre na cidade com as janelas fechadas, senão vão achar que você é matador de aluguel.") E esses caras não pensam nem por um segundo antes de se sair com o "não tem nada pra escrever". Felizmente, Bigodão, provando que é um dos seres humanos mais inconvenientes que eu já vi, senta-se, cheio de charme, à mesa da repórter, sem ser convidado, e pergunta sobre "que tipo de história" a moça quer escrever. E esta, provando que é ainda mais peculiar que o Bigodão, responde que "digamos que eu queira uma historinha interessante sobre aquele lago esquisito. Talvez haja uma matéria sobre ele. Que lendas surgiram em torno dele? Vocês o chamam de... o lago dos fantasmas?" Ao que eu pergunto: 1) O que aquele lago tem de "esquisito"? e 2) Quem diabos está se lixando para histórias retardadas sobre uma lagoa? Sério, alguém vai comprar o jornal devido à eletrizante matéria sobre uma lagoa perto de uma vila francesa que chamam de "lago dos fantasmas"? E em que universo lagos são acidentes geográficos tão fascinantes que é seguro supor que, onde há um, há "lendas em torno dele"? Nada disso importa, claro. O que importa é que o Bigodão diz logo que "o prefeito sabe tudo sobre o lago" e se oferece para levar a moça à casa deste. Quer dizer que, além de ficar invadindo a casa do prefeito, o cidadão agora oferece a terceiros a oportunidade de violar a privacidade do Howard Vernon?

A moça, claro, aceita a proposta e vai à casa do prefeito. Bigodão mostra a casa e explica que "é só tocar a campainha e ir entrando". A moça faz exatamente isso e acaba topando com um (compreensivelmente) mal-humorado Howard Vernon, que explica algumas normas de conduta elementares ("Você não tem o direito de entrar na minha casa assim!") à moça. Esta não se intimida: identificando-se como (não é piada, acho que é esse o nome da mulher) Katia News, a repórter aduz que Bigodão contou algumas coisas a ela (mentira) como, por exemplo, o fato de o prefeito saber algumas "histórias estranhas" sobre o lago. Ela tenta alisar mostrando ao prefeito que trouxe um livro sobre "fenômenos sobrenaturais", o que, surpreendentemente, funciona: o prefeito se entusiasma com a obra (deve ser "Horror em Amityville" e aposto que o prefeito ficou fascinado com a "história real") e, muito mais cordial, convida a moça para entrar.

Aconchegados na sala-de-estar do chefe do poder executivo municipal, Howard Vernon indaga o motivo do interesse de Katia News sobre o Lake of the Damned, como é chamada o lago. Ele elucida que o verdadeiro nome do lago é The Goddamned Lake (totalmente diferente) e que  "Lake of the Damned" é uma alcunha recente. E como o lago ganhou essa nova alcunha? Segundo o prefeito, foi algo que aconteceu há muito tempo atrás e não pode ser atualizado (?) de modo que falar sobre o assunto é uma perda de tempo. Katia News, contudo, é determinada. Após encher o saco por mais um segundo, Vernon acaba desembuchando: foi A Guerra...

Pelo que eu entendi, uns soldados nazistas estavam passando pela vila quando alguém com um daqueles chaveirinhos cheios de efeitos sonoros disparou o bicho no volume máximo. Uma mocinha indefesa (que chamaremos de Isabelle Binoche, porque eu estava comentando sobre a Juliette Binoche outro dia no Facebook e este foi o primeiro sobrenome francês que me veio à cabeça; a moça não tem a menor semelhança física com a Juliette e... o filme é muito ruim, cara. Estou com preguiça de pensar.) fica histérica com a cacofonia, mas é resgatada por um valente soldado alemão, que chamaremos de Rutgar (porque, como diria o Rubens Ewald Filho, é tipo "Rutger", só que mais chique, porque tem um "a" no lugar do "e"). Lamentavelmente, o barulho do chaveirinho acaba ferindo brutalmente o Rutgar, que tem que se recuperar dos ferimentos gravíssimos causados a seus tímpanos. Nesse ínterim, Isabelle Binoche desenvolve uma irresistível paixão pelo heróico nazista (nunca achei que algum dia fosse escrever tal expressão), uma coisa leva a outra e o amor acontece. Rutgar, recuperado, tem que partir, mas,  nove meses depois, uma rutgarzinha vem ao mundo. Seu nome (como saberemos em breve e eu vou adiantar logo) é Helena.

Mas "A Guerra" não espera por ninguém e Rutgar acaba tendo que voltar ao combate, deixando a Isabelle muito triste. Eu sei disso porque uma montagem das mais sofisticadas mostra Rutgar e Sua Banda (doravante chamados de RSB) andando no seu caminhão badass (banheira motorizada, provavelmente emprestada do avô do Jean Rollin) e, em seguida, um close no rosto da Isabelle, por vários segundos, durante os quais o Jean Rollin provavelmente tentou, sem sucesso, fazer a moça chorar. O tempo passa (não faço a menor idéia de quanto tempo, só que, tudo indica, "A Guerra" ainda está rolando) e um bando de caras vestindo casacos brancos está correndo pela floresta, ao som do chaveirinho barulhento... digo, trocando tiros com alguém. Desta vez, sei que são tiros de verdade, ao invés de um daqueles chaveirinhos, porque os caras estão armados e disparando tiros. É tudo muito autêntico para os padrões do filme: os combatentes têm armas e tudo mais. Se alguém me dissesse que, durante as filmagens de "Zombie Lake", um museu sobre a Segunda Guerra Mundial foi assaltado, eu não precisaria de muito esforço para adivinhar quem foram os meliantes....

A guerra realmente traz à tona o pior dos homens. Pelo lado positivo, o Rollin improvisou até umas explosões!
Se o filme custou cento e trinta dólares, eu diria que oitenta foram gastos nesta cena, vinte foram gastos com filme, cinco com o figurino o resto o Rollin embolsou, só pra sacanear. Corta para uma transmissão da Rádio Liberdade (a nomenclatura deve ter sido idéia do pai da Katia News), anunciando que unidades do terceiro exército alemão estão se retirando da "ZZrrgh Area". E não, não estou sacaneando. Ele fala que tropas alemães estão se retirando da "pigarro" área. Se você pensar bem, há algo de lírico em tal onomatopéia: talvez Jean Rollin tencione dizer que a guerra deixou cicatrizes em toda a Europa e o "lago dos zumbis" podia estar em qualquer lugar (onde houvesse um lago e zumbis que vomitam extrato de tomate). Um homem cínico, por outro lado, poderia pensar que o cineasta inventou a "Zzrrgh Area" porque, se utilizasse o nome de um local que realmente existisse, corria o risco de ser processado. Mas eu não sou um homem cínico.

Jean Rollin: And I'm not a schemer.
O radialista anuncia que todas as unidades disponíveis da Resistência devem atrasar retirada das tropas alemãs, o que não é um bom presságio para RSB. Na cena seguinte, vemos um tanque de guerra, alguns caminhões e vários soldados em movimento, sugerindo que se trata do terceiro exército alemão. Isso é curioso, porque o exército parece estar batendo em retirada com surpreendente serenidade. Um homem cínico diria que o Rollin inclui tal sequência mediante subtração de footage de algum outro filme de guerra que nada tem a ver com "Zombie Lake", hipótese que se torna ainda mais verossímil quando vemos RSB, na cena seguinte, em um cenário completamente diferente do ocupado pelo "terceiro exército alemão batendo em retirada". Eu, entretanto, conforme já aduzido, não sou um homem cínico.

Ah... Ainda bem que eu não sou um homem cínico. O cenário é diferente porque, é claro, estamos de volta à vila (cujo nome, acabo de perceber, até agora não foi apresentado ao espectador). Rutgar, gentleman que é, veio ver Isabelle Binoche pela última vez, antes de, provavelmente, fugir para a América do Sul e assumir uma identidade falsa. Sensíveis, os colegas do nosso herói avisam para ele "se apressar; você tem cinco minutos". Rutgar entra na casa da Binoche, que, ao que parece, acabou de dar à luz e está de cama, sob os cuidados de Uma Velhinha Gorda Cujo Nome Não Saberemos ("Velhinha Gorda", como a chamaremos doravante, por uma questão de preguiça). Em um momento dos mais comoventes, vemos Rutgar contemplar, com ternura, a filha que deixará para trás sem pestanejar (porque se o nazista não vai à América do Sul, pode ter certeza de que esta não vai ao nazista). Digo, acho que ele está olhando para a filha: vemos apenas que ele está olhando para algo que parece estar em um berço, off camera, e Velhinha Gorda diz que "Nós a chamamos de Helena". O novo papai, então, se debruça sobre Isabelle Binoche. Esta profere algumas palavras que, ao que parece, os responsáveis pela dublagem não julgaram relevantes o bastante para traduzir: é perceptível que os lábios da moça está se movendo, mas nenhuma palavra se faz ouvir na trilha sonora. Após um apaixonado beijo, o garanhão ariano corre para a porta, alveja Velhinha Gorda com um olhar enigmático e cai fora (porque, novamente, a América do Sul não vai ao nazista). Após alguns segundos andando no caminhão badass, RSB resolvem parar e prosseguir a pé. Por que? Jamais saberemos. Mas a câmera acompanha a incrível jornada (caminhada entediante) dos rapazes por vários segundos, até que eles... chegam num local onde há alguns troncos empilhados e param por alguns segundos. Um dos rapazes afrouxa o capacete, acende um cachimbo (mais uma vez: é uma das retiradas mais tranquilas de que já ouvi falar) e... um grupo de Soldados da Resistência (Bigodão entre eles) surge do mato e abre fogo, eliminando todos os alemães. E um dos atores que interpreta os nazistas decide que não vai passar despercebido! Creio que ele, percebendo que a morte do seu personagem limitaria severamente a possibilidade de mostrar suas habilidades como ator (afinal, zumbis não choram), decidiu que aproveitaria sua última cena com vida ao máximo, mostrando toda a pujança de seu talento dramático:


ACTING! É assim que um ator de verdade mostra a morte em toda sua complexidade! Posso até imaginar esse cara se bombando pra filmar a cena: "É a última cena antes de meu personagem morrer. Imma act the FUCK OUT OF IT, MOTHERFUCKER!"

Entrementes, Isabelle Binoche morre e Velhinha Gorda chora. Não faço idéia do motivo da morte da moça, mas até parece que a sua vida e a do Rutgar estavam interligadas! É o destino! Ou a atriz cansou de ser enrolada por Jean Rollin sempre que perguntava sobre seu salário e decidiu sair de cena. Uma coisa é certa: não há um médico presente. Velhinha Gorda, não obstante, cobre o rosto da moça e, presume-se, vai chamar o rabecão. Cara, isso não é nem um pouco científico. Está certo que... Digo, tudo indica que estamos na Segunda Guerra Mundial, mas já se tinha conhecimento de algo chamado catalepsia à época (como qualquer pessoa que tenha atentado para a obsessão do Poe com o tema já deve ter percebido). Não seria prudente consultar um médico antes de dar a moça por morta? Será que Velhinha Gorda é a verdadeira vilã do filme? Não. É só um buraco no roteiro mesmo.

Enquanto isso, alguém está roubando as botas e a pistola de um dos nazistas mortos. Acho que acabei de descrever a coisa mais deprimente que posso imaginar. Um personagem está furtando as botas e a pistola de um dos nazistas mortos. Reflita um pouco sobre essa situação. É o tipo de coisa que inspira compaixão em viciados em crack. Há um momento na vida - provavelmente ao afanar o coturno e a arma de um nazista morto - que você tem que se perguntar: "Onde eu errei? Que fiz para merecer estar nesta situação? O que meus pais diriam se me vissem agora? O que Jesus diria?" Eu sei o que Jesus diria. Ele provavelmente exibiria uma expressão de asco e diria: "Vou sair daqui e procurar uns leprosos pra me fazer companhia porque tu é MUITO SEBOSO, cara. Francamente!" Mas eu divago. O prefeito Howard Vernon (quanto tempo dura o mandato nessa birosca?) aparece e, mostrando toda sua classe, resmunga que "Vocês não podem deixar deixar todos esses corpos para trás!" O nobre ladrão de coturnos retruca, desinteressado, que "Não podemos ficar mais tempo aqui. Há mais dois caminhões de alemães vindo para cá." Prefeito: "Pior ainda. Eles vão matar todos na vila se vocês deixarem os corpos por aí." Ladrão de coturno (vou tentar pontuar de acordo com a entonação do ator): "Encontraremos algo. Mas temos que sair daqui não podemos enterrá-los mas vamos só jogá-los no lago." E lá vão os Heróis da Resistência jogar os presuntos no lago.

É, deixa assim mesmo. Os dois caminhões de alemães não vão notar.
E assim se encerra o flashback. Katia News (repito: isso não é piada) conclui: "Agora entendo por que o lago tem um nome tão estranho." Que nome estranho? Você que chegou perguntando se havia alguma "historinha estranha" em torno do lago e chutando que ele era chamado de "Lago dos Fantasmas". E o prefeito, em um momento de sagacidade que faria Oscar Wilde se roer de inveja, comenta: "É. Acho que você pode chamá-lo de 'O Maldito Lago dos Malditos'." Sensível, a repórter diz que "Eu sei como você se sente em relação ao lago", mas Howard Vernon é incisivo: "Não, não sabe. Ninguém sabe como eu me sinto e você também não", assevera, melancólico. E a conversa acaba por aí. A moça agradece ao prefeito por sua cooperação e vai embora. Pronto. Isso é que é jornalismo investigativo! Diante da assertiva de que "Ninguém entende como eu me sinto em relação ao lago", a moça simplesmente concorda e vai embora. O prefeito tem a consciência pesada? Acha que foi covardia a forma como os nazistas foram assassinados e se sente cúmplice? Acha (como eu) que foi muito leniente e devia ter instigado os "membros da Resistência" a ter torturado os nazistas antes de matá-los? Se depender de Katia News, jamais saberemos.

Enquanto isso, Helena (aparentando ter uns dez anos) está num celeiro. "Pobrezinha!", exclama Velhinha Gorda. "Igual a sua mãe! Venha! Você não devia ficar aqui!" E acaba de me ocorrer uma dúvida: quando, exatamente, se passa esse filme? A indumentária do prefeito, da Katia News e dos moradores da vila indica que a história se passa ao tempo em que o filme foi gravado (início da década de 80), mas isso não faz muito sentido, pois Helena aparenta ter uns dez, doze anos no máximo. Se ela nasceu no final da Segunda Guerra Mundial, o filme se passa... na década de 1950? Se é o caso, como se explica a próxima cena?

A famosa cena do time de vôlei...
Continua num próximo post porque... preciso de um tempo, cara. O filme é muito ruim mesmo. E eu já vi Manos - The Hands of Fate. Bons tempos, aqueles. Ainda faltam mais de quarenta minutos de filme e eu sou apenas um ser humano. O Jean Rollin me derrotou. Meu maxilar está doendo de tanto rir desse negócio ridículo e minha cabeça está doendo de tentar descrever o que se passa na tela sem me repetir.


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