sexta-feira, 24 de abril de 2009

Whip and the Body/La Frustra e Il Corpo


"La Frusta e il Corpo/The Whip and the Body" é, em minha opinião, o melhor horror gótico de Mario Bava. Infelizmente, é também uma das obras menos vistas do diretor e um dos motivos pelos quais me irrita profundamente a "crítica profissional" de cinema. Quando Buñuel ou Polanski tratam de temas como distúrbios psicossexuais, a crítica se derrete e louva os cineastas como "transgressores" e "visionários". Quando Mario Bava dirige uma história de fantasmas magnificamente fotograda e com um brilhante roteiro que aborda temas semelhantes, é tratado como um velho depravado, o filme é censurado em todo canto, mutilado pelos distribuidores até se tornar irreconhecível quando comparado à visão original do diretor, e são necessários quase quarenta anos para que a obra seja restaurada (graças, principalmente, aos esforços de Tim Lucas e Joe Dante) e possa ser apreciada da maneira que o saudoso mestre a concebeu.

A trama se inicia com o retorno de Kurt Menliff (Christopher Lee) ao castelo de sua família. A chegada do cidadão suscita um turbilhão de sentimentos dignos de uma novela mexicana. Kurt, conforme vai revelando a história, foi exilado por seu pai, em razão de seu caráter duvidoso: anos atrás, o rapaz seduziu Tanya, filha adolescente da criada Georgia (Harriet Medin) e, depois de se divertir com a ingênua manceba, abandonou-a, levando-a ao suicídio. Georgia, compreensivelmente, até hoje não engoliu essa sacanagem e guarda como uma jóia o punhal com que sua filha se matou, jurando que um dia a arma será o instrumento da morte de Kurt.

Outro motivo que torna o retorno do primogênito dos Menliff inconveniente é o fato de seu irmão, Christian (Luciano Stella, mais conhecido como Tony Kendall) estar casado com Nevenka (a espetacular beldade israelense Daliah Lavi), antiga amante de Kurt. Tal casamento, para tornar a situação ainda mais desconfortável, não foi fruto da livre e espontânea vontade do casal, mas imposição do Conde Menliff, patriarca do clã (Gustavo de Nardo). A verdadeira paixão de Christian é sua prima, Katia (Ida Galli), que também vive no castelo. Todas as famílias felizes são parecidas...


Kurt, diga-se, é realmente um escroto de proporções épicas. O cidadão é um dos melhores vilões interpretados por Christopher Lee, exalando arrogância e ostentando desprezo por praticamente todos os outros personagens da trama, sob uma sutil fachada de elegância. Alegando ter voltado para parabenizar o irmão pelo seu casamento e pedir perdão ao pai pelas transgressões passadas, o que o rapaz realmente quer é a restauração de seu título, de sua primazia na descendência da linhagem e de seus bens, dos quais foi destituído quando do exílio imposto por seu pai após a "indiscrição" com a filha da criada. Tais pretensões são reveladas quando Kurt adentra o quarto de seu pai enfermo através por uma passagem secreta na lareira do aposento (artifício também presente no clássico "Black Sunday", do diretor), levando imediatamente um chega-pra-lá do velho, o que muito irrita o filho pródigo.

E, claro, o rapaz também quer Nevenka, cuja perda para o irmão ele nunca engoliu.

O que conduz à primeira cena que provocará uma reação "Puta que o pariu! Isso é inacreditável!": Nevenka está fazendo um idílico passeio de cavalo pela praia, abaixo do cume onde fica o castelo. Fazendo uma pausa para relaxar, a beldade traça desenhos na areia com o chicote do cavalo, quando, subitamente...

Kurt entra em cena, fala sobre os velhos tempos e tenta dar uns malhos na moça, que, após ceder por alguns instantes, se esquiva e acerta tenta acertar uma chicotada no rapaz. Este não se dá por vencido e, tomando o chicote, acerta uma pancada na moça, que, acuada, recua até tropeçar e cair. E Kurt, exclamando, "Você não mudou. Você sempre adorou violência.", procede a desferir uma série de golpes de chicote nas costas da moça. Ao que parece, Kurt sabe do que estava falando, pois Nevenka solta uma série de gemidos enquanto está sendo açoitada, mas não parecem ser exatamente gemidos de dor...

Finda a sessão de chicotadas, Nevenka olha seu algoz com uma expressão de "vem pra mim"; sem hesitar, Kurt larga o chicote, quando o casal parte para o sexy-time... fade to black. Isso mesmo, colegas. O que temos aqui é uma autêntica e explícita cena de S&M, filmada em 1963. E foi principalmente isso que levou o filme a ser editado até se tornar, em certas versões, ininteligível.

Quando cai a noite e Nevenka ainda não retornou de seu passeio, Christian está nervoso e preparando-se para iniciar uma busca pela sua consorte. Kurt chega alegre e despreocupado (claro, o cara acabou de dar umas pegas em Daliah Lavi), fazendo pouco da preocupação do corno, debochando da criada cujo suicídio da filha ele, indiretamente, provocou e zombando do amor reprimido entre Christian e sua prima Katia. O cidadão sobe para o seu quarto e prepara-se para dar uma relaxada, quando uma voz fantasmagórica, cortando o som da ventania que entra pela janela, começa a chamar seu nome. Perquirindo seus arredores em busca da origem da voz, Kurt é atacado por alguém que finca o punhal que matou Tanya em sua garganta...

Nevenka é finalmente encontrada pelo mordomo, Losat, ainda na praia, aparentemente levada à inconsciência pela sessão de amor violento com Kurt. Todos retornam ao castelo, onde descobrem o recente presunto. Quem terá sido o assassino? Christian, que estava desacompanhado durante a busca por Nevenka, talvez porque teria descoberto o par de chifres que foi recentemente afixado em sua testa? Georgia, a fim de justiçar a morte de sua filha? O velho Conde Menliff, que evidentemente detestava seu filho canalha e era a única pessoa que ficou no castelo com Kurt, a fim de "lavar a honra da família"? A própria Nevenka, cujo fetiche sexual reprimido (e que, no contexto histórico, certamente era fruto de intensa vergonha para a moça) foi forçosamente despertado por seu amante? Losat, que é mais esquisito que uma nota de três reais (e é interpretado por Luciano Pigozzi, o "Peter Lorre" italiano)? Katia, a quem Kurt tinha prazer de torturar psicologicamente, lembrando-lhe de sua paixão frustrada por Christian? Todas essas suspeitas já renderiam um interessante (embora convencional) mistério. Mas surge mais uma indagação:

Estaria Kurt Menliff, de fato, morto?

Pois, após o sepultamento do rapaz (e a cerimônia é pra lá de estranha: embora pareça se tratar de um velório cristão ortodoxo, o caixão é carregado por uns caras trajando o que só pode ser descrito como uma versão vermelha dos trajes da KKK), estranhos incidentes começam a ocorrer.


Tocando piano, Nevenka vislumbra Kurt na janela, fitando-a impiedosamente.


Depois, é despertada, na calada da noite, por um barulho que se assemelha ao estalar de chicotadas. Esgueirando-se pelos corredores sombrios do castelo, a beldade descobre que se tratava apenas do barulho de um galho sendo golpeado pela força do vento, contra uma das janelas.

Mais tarde, porém, em seu quarto, ela se depara com Kurt, um lenço ensanguentado cobrindo o ferimento em sua garganta (um espectro ou Kurt fingindo ser um espectro?), que está prestes a atacá-la, quando os gritos da moça atraem Christian (sim, o mané é casado com Daliah Lavi, mas dorme em outro quarto), provocando o desaparecimento da aparição e levando à conclusão de que tudo não passou de uma alucinação.

Posteriormente, Nevenka é novamente assombrada por Kurt, e, dessa vez, o ocorrido não pode ser atribuído a alucinações, pois o ataque (se é que se pode se chamar de ataque; após superar o medo, a reação da moça conduz a uma cena muito semelhante à ocorrida na praia) deixa visíveis marcas de chicote nas costas da jovem.

E então o Conde aparece assassinado, sua garganta cortada. Para tornar o homicídio ainda mais tétrico, o punhal que provocou a morte de Kurt, e que havia sido guardado, desaparece, levando à conclusão de que a mesma arma foi usada no crime e reforçando a suspeita de que Kurt talvez tenha a simulado a própria morte e, agora, esteja em busca de sua parte do patrimônio da família.

Não vou adiantar mais detalhes sobre a trama porque trata-se de um mistério cuja resolução realmente surpreende e faz sentido, dando uma conclusão genuinamente satisfatória à história (diferente, por exemplo, de todas as "reviravoltas" dos filmes de M. Night Shyamalam desde Corpo Fechado).

Ademais, tão relevante quanto a trama é técnica de Bava na direção. Como tentei demonstrar através de excesso de fotos ao longo do artigo, todas as cenas do filme são compostas de forma a criar um denso clima gótico. A fotografia do filme, com o perdão da boiolagem, é deslumbrante. Cada cena parece uma pintura em movimento e a maneira como o maestro utiliza cores e sombras para criar atmosfera e refletir o estado emocional dos personagens faz produções caras e suntuosas da época parecerem ter sido fotografados com a perícia dos filmes direct-to-video de hoje em dia. Exemplos marcantes disso são a primeira vez em que Nevenka percorre os corredores do castelo, ouvindo o que pensa ser estalar de chicotes, bem como a visita desta ao túmulo de Kurt, onde, após ouvir ouvir um ruído, suspeita estar diante de uma manifestação sobrenatural, deparando-se com marcas enlameadas das botas do falecido no chão.

Sou fã das produções da Hammer e dos filmes de Poe do Corman, mas, francamente, nenhum deles chega aos pés, em termos de opulência visual, a Whip and the Body.

Detalhe que deve ser abordado, ainda, é que o filme é um genuíno romance gótico. A relação sadomasoquista entre Menliff e Nevenka pode parecer, superficialmente, uma perversão, mas é inegável que há genuíno feeling além das chibatadas, que são, releva mencionar, sempre acompanhadas pelo belo tema romântico de Carlo Rustichelli. É patente que Kurt sente uma frustração mal disfarçada por ter perdido Nevenka para o irmão; igualmente evidente é que esta é apaixonada pelo vilão - e assim continua após a morte deste. As cenas em que a protagonista é açoitada por Menliff (tanto antes quanto após a morte deste) em momento algum o retratam como um vilão ou esta como uma vítima: é óbvio que a situação é sexualmente gratificante para ambas as partes. Kurt é o vilão da história não em razão de sua relação com Nevenka, mas em virtude de ser frio, cruel (como é demonstrado em suas interações com todos os demais personagens) e ganancioso (fica claro que sua principal motivação ao retornar ao lar é reaver seu título e sua parte no patrimônio da família). A aparente repulsa que a protagonista sente por ele é, na verdade, uma sublimação do sentimento de culpa causado por sua sexualidade "desviante" e reprimida. É tal repressão, na verdade (e SPOILERS daqui em diante, para quem não quer saber detalhes sobre o desfecho da trama) que desencadeia a série de desgraças que se abatem sobre a família Menliff. Neste contexto, o final trágico, é, paradoxalmente, feliz - Nevenka finalmente aceita lidar com os fatos e é, de certo modo, reunida com seu amante.

Deixemos, porém, masturbações intelectuais de lado e vamos direto ao ponto: este filme é do caralho. Funciona como filme de terror sobrenatural (além das aparições e assassinatos, temos catacumbas sinistras, exumações, passagens secretas e tudo mais que faz a alegria dos fãs do cinema de terror macarrônico da década de 60) e funciona como romance gótico. Christopher Lee está excelente como o vilão (apesar de sua voz estar dublada) e Daliah Lavi é um motivo válido para tomar partido dos israelenses nos conflitos no Oriente Médio. É o tipo de filme que Francis Coppola queria fazer (e não conseguiu) com "Drácula de Bram Stoker". Assista a esse filme. Creio que, a rigor, a obra está no domínio público e pode ser facilmente obtida via P2P, mas, sinceramente, não recomendo - você corre risco de baixar uma das horríveis cópias mutiladas que foram lançadas no EUA e em parte da Europa (sem as cenas de S&M). Sugiro desmbolsar um extra e importar o DVD da VCI, que, além de conter uma versão uncut do filme, com qualidade impecável, inclui, ainda, uma excelente faixa de comentário de Tim Lucas, obrigatória para qualquer fã de Bava ou do cinema de horror italiano do período.

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